APRENDER A SER HUMANO EM UM MUNDO CADA VEZ MAIS DIGITAL
Na época que eu cursava Pedagogia, didática era minha disciplina favorita. A professora Nakano, uma japonesa que em muito lembrava algumas mulheres da minha família, falava que tudo era sobre “aprender a aprender”.
Apesar de ter sido a única cadeira que eu tirei dez em todas as provas durante todo o curso universitário (e minhas colegas diziam que ela puxava meu saco porque também tenho um ‘pezinho’ na terra do Sol Nascente), isso que ela dizia me intrigava muito.
Obviamente, é inquestionável o valor do conhecimento (e estranho seria se uma Pedagoga pensasse algo diferente disso!), mas tinha uma questão que me acompanhava: qual o real valor do aprendizado? Para que, afinal, serve ter tanto conhecimento?
Os anos passaram e algumas coisas começaram a fazer sentido. Uma das principais lições que adquiri nesse tempo foi que, em Educação, um mesmo conceito pode ser apresentado por diversos termos ou roupagens, mas que, ao final, a essência é a mesma.
Nesse sentido, “aprender a aprender” é o mesmo que “aprender a conhecer”, um dos quatro pilares da Educação para o século XXI da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), braço da ONU que desenvolve projetos para promoção do desenvolvimento social e auxilia na formulação de políticas públicas em parceria com todas as esferas dos Estados-Membros (atualmente 193 países), sociedade civil e iniciativa privada.
“Os quatro pilares da Educação” foram apresentados em 1996 pela UNESCO por meio de um documento intitulado “Educação, um tesouro a descobrir” e são eles: “aprender a conhecer”, “aprender a fazer”, “aprender a conviver” e “aprender a ser”.
Essa é uma concepção de Educação integral, sobre a qual o desenvolvimento humano se dá por meio de operações – sejam elas concretas, a nível prático, ou abstratas, a nível intelectual – em integração com si e suas sensações, seu ambiente e com o outro, com vistas ao progresso individual e social.
“Os quatro pilares” tornaram-se uma diretriz para a Educação do século XXI a nível global, em resposta a questionamentos sobre o futuro do trabalho e o papel do ser humano frente a tantas transformações de base tecnológica que invadiram a vida das pessoas, das empresas e da sociedade nos últimos anos.
Apesar de não ser uma ideia completamente nova, visto que teóricos como Jean Jacques Rosseau e Heinrich Pestalozzi já falavam em suas vastas obras sobre Educação integral, esse posicionamento da UNESCO contribuiu muito para fortalecer os questionamentos que a Educação de base conteudista vem sofrendo nos últimos anos.
Em um mundo VUCA como esse que vivemos, com tantas incertezas e tantos desafios complexos, com novas profissões e desafios surgindo em grande velocidade, simplesmente consumir conteúdos não é mais suficiente. É preciso “aprender a aprender” para aprender o que preciso for, e empregar conhecimentos, técnicas e recursos em novas e diferentes situações, ou seja, transformar aprendizado em competência.
Segundo o dicionário Michaelis, competência é, dentre outros significados, o “conjunto de conhecimentos” e “aptidão que um indivíduo tem para opinar sobre um assunto e sobre o qual é versado”. Todas as outras equivalências e expressões lá encontradas remetem a ideia da necessidade de uma base de conhecimentos para realização de um objetivo concreto. Não se opina efetivamente sobre um assunto sem um conjunto de conhecimentos, nem se tem competência comunicativa sem conhecer o idioma. Ou seja, não há competência sem repertório, sem fundamentação.
Assim, para auxiliar organizações e políticas públicas a identificar e desenvolver os conhecimentos e habilidades necessárias para um mundo dinâmico e volátil como o que vivemos, em 2019, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicou o resultado de um projeto chamado “OECD Future of Education and Skills 2030” (OCDE Futuro da Educação e Habilidades para 2030). Resultado da revisão e aperfeiçoamento de estudos anteriores realizados pela Organização, seu objetivo foi apresentar quais conhecimentos e competências são necessárias para que pessoas projetem e construam uma vida plena nas sociedades baseadas na economia, na tecnologia e no conhecimento, e como essas competências podem ser desenvolvidas.
A pesquisa apresenta “núcleos fundamentais” (core foundations), ou seja, os conhecimentos básicos que são a base estrutural para o desenvolvimento de competências. As bases cognitivas – que incluem letramento e numeramento, já descritas em outros estudos – são reforçadas e ampliadas, contemplando nesse momento o letramento digital e, no mesmo grau de importância, a saúde física e mental (health foundation) e as bases sociais e emocionais (social and emotional foundations).
Essa perspectiva holística de ser humano e Educação é considerada a espinha dorsal que possibilita o desenvolvimento das “competências transformadoras” (transformative competencies) apresentadas pela pesquisa: criar novos valores (creating new value), reconciliar tensões e dilemas (reconciling tensions and dilemmas) e assumir responsabilidades (taking responsability).
Tais competências são consideradas “transformadoras” porque são aplicáveis em diversas experiências e esferas da vida humana e, a partir delas, novas competências, conhecimentos, ideias e atitudes podem emergir.
A complexidade dos desafios globais contemporâneos exige pessoas preparadas para ver além, idealizar e viabilizar soluções, desatar e reconfigurar nós em cenários de ambíguos e de múltiplos interesses, sendo capazes de gerenciar emoções e avaliar criticamente as consequências práticas, éticas e morais de suas decisões.
O Ciclo Antecipação – Ação – Reflexão para 2030
Como toda competência, aquelas que são transformadoras também requerem desenvolvimento. Não nascemos sabendo criar novas ideias, tampouco conectar pontos e agir responsavelmente.
Nesse sentido, o “OCDE Futuro da Educação e Habilidades 2030” propõe uma metodologia de base construtivista chamada “Ciclo Antecipação – Ação – Reflexão 2030” (Antecipation – Action – Reflection Cycle for 2030) para contribuir para o desenvolvimento dessas e de outras competências. Também adaptável a diversas situações, o ciclo AAR (AAR Cycle) desenvolve-se a partir de uma perspectiva de aprendizagem que envolve conhecimento técnico, autoconsciência, visão de futuro, agir com responsabilidade e senso crítico, de forma a produzir novos conhecimentos, perspectivas ou questionamentos.
Antecipar requer definir objetivos claros, vislumbrar possibilidades e escolher dentre elas – e assumir suas consequências. Agir significa operar conscientemente afim de atingir objetivos previstos – e efetuar mudanças de rota se necessário. E, refletir é a “razão e o porquê”, é onde o pensamento se aprofunda, onde “aprender a aprender” se materializa. É onde competências essencialmente humanas são desenvolvidas.
E nesse ponto que algumas chaves viraram para mim. Quando a professora Nakano falava sobre “aprender a aprender”, ou “aprender a conhecer”, isso significava, entre outras coisas, saber navegar em um mar de informações que as tecnologias nos possibilitaram e ser capaz de identificar, selecionar, utilizar, interpretar e avaliar o que melhor se encaixa para o seu contexto, para o seu momento, para a sua intenção. E isso as máquinas ainda não são capazes de fazer.
Nesse sentido, a digitalização da informação, o acesso a dados e às tecnologias mais modernas que temos atualmente têm pouca ou nenhuma utilidade se não estiverem a serviço do ser humano, utilizadas a partir da sensibilidade e da inteligência humana.
O desafio maior não está no acesso à informação, mas sim na construção e uso do conhecimento. O valor real da aprendizagem pode estar na capacidade de utilizá-la em uma necessidade real, ou seja, “aprendendo a fazer”, junto com pessoas de diferentes personalidades, áreas e visões de mundo; “aprendendo a conviver” com elas, se desenvolvendo como pessoa em sua integralidade; e “aprendendo a ser” para aprender novamente, em um ciclo que só termina quando desistimos de aprender
Vanessa Yosioka Collacio é Pedagoga e Comunicadora. Artigo publicado em O Futuro das Coisas. Crédito da imagem da capa: Jungho Lee
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