COMO COMPETIR NA ERA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?
Nos últimos 20 anos, o mundo mudou muito mais que nos 40 anos anteriores. As transformações são lideradas pela tecnologia digital e observamos algumas empresas na linha de frente dessa transformação. Cito oito que chamam atenção de imediato e que “disruptaram” setores existentes ou criaram outros, que são Alphabet (ex-Google), Apple, Amazon, Airbnb, Facebook, Microsoft, Netflix e Tesla.
Agora, em meados de janeiro de 2021, a Apple vale cerca de US$ 2,2 trilhões (numa comparação grosseira, pois são coisas diferentes, a empresa vale mais que o PIB de países como Itália, Brasil, Coréia do Sul ou Rússia); a Microsoft, US$ 1,6 bilhão (cerca de 14 vezes uma IBM); a Amazon US$ 1,5 bilhão (quase quatro Walmart); a Tesla mais de US$ 800 bilhões (mais que as nove das maiores montadoras juntas); Facebook quase isso (US$ 750 bilhões aproximadamente); a Netflix mais US$ 200 bilhões (compete com a Disney); e a Airbnb em torno de US$ 100 bilhões (mais do dobro da maior rede de hotéis do mundo, a Marriott). Sem falarmos de chinesas como Alibaba e Tencent, que constituem um mundo à parte.
Para termos uma ideia da velocidade das mudanças, o Google, em 1999, tinha oito funcionários. Quando abriu seu capital, em 2004, a projeção era conseguir captar US$ 4 bilhões. Hoje, vale em torno de US$ 1,2 trilhão. A Amazon, em 1994, era uma pequena loja online de venda de livros.
Mas tudo isso só acontece lá fora? Não. Há 20 anos, no Brasil, tínhamos 2 milhões de computadores e a imensa maioria estava nas empresas. Quem navegava na internet era chamado de internauta! Hoje, estamos conectados. Por exemplo, 120 milhões de pessoas usam WhatsApp no Brasil. Ele está instalado em 99% dos celulares do Brasil e cerca de 80% dos brasileiros o usam como principal fonte de informação. Outro dado? No último Black Friday, o iFood bateu o recorde de 2,5 milhões de pedidos em um único dia, o que equivaleu a 100 mil entregas realizadas a cada hora.
O Brasil não está isolado do resto do mundo e precisamos jogar fora conceitos de que aqui as coisas são diferentes e que o que acontece lá fora não acontecerá aqui. As verdades absolutas caem por terra e não temos mais zonas de conforto. Compramos tênis online (Netshoes), deixamos o carro em casa (Uber) e não precisamos mais ir ao banco para abrir uma conta. Essas empresas estão mostrando o caminho. Mostrar o caminho não significa copiá-las, mas usá-las como inspiração.
A propósito, vejo com desgosto que muitos cursos de gestão e administração ainda não formam profissionais fluentes digitais, e que as lições (boas ou más) que essas empresas nos ensinam, o cruzamento que elas promovem entre a tecnologia e o valor aos stakeholders, nos ajudaria em muito em entender o atual e futuro mundo dos negócios.
Não é por falta de literatura. Por exemplo, podemos dissecar o modelo de operação da Amazon lendo o livro “Bezonomics”, de Brian Dumaine. Ou através do “Os Quatro”, de Scott Galloway, ter uma ideia das estratégias de quatro delas, Facebook, Alphabet, Amazon e Apple. E, claro, além de incontáveis artigos disponíveis neste mundo de informações que é a web!
Vamos abrir uma janela e observar um fato que é similar a todas: estão sendo pioneiras no uso intensivo de IA! A IA está no core de todas elas. Não apenas em aplicações isoladas, dispersas aqui e ali, mas no centro de seus modelos de operação e negócios.
Olhemos, por exemplo, o setor de fotografias. Comparem com 20 anos atrás. Hoje tiramos mais de 10 trilhões de fotos digitais por ano, cinco ordens de magnitude maior que todas as fotos tradicionais já tiradas desde que a fotografia foi inventada. E elas são armazenadas em nuvens e analisadas por algoritmos, de empresas como Google, Facebook, Instagram, Snapchat, TikTok e outras.
Com base nessas análises, elas melhoram continuamente seus algoritmos e nos recomendam produtos e serviços cada vez mais personalizados. A fotografia digital, motorizada pela IA, não apenas substituiu as empesas anteriores (Kodak e Polaroid) mas criou todo um novo mundo de negócios impensáveis anteriormente. Basta comparar a Kodak com o Instagram. São coisas completamente diferentes. A Kodak morreu não pela competição com a Fuji, mas pela combinação e fatores como o surgimento do smartphone e redes sociais, como Facebook e Instagram. Uma competição inimaginável pelos pensamentos tradicionais.
Outra provável “disrupção”: a tecnologia de voz, cada vez mais onipresente, como em assistentes como Alexa, tem potencial de diminuir em muito o valor das marcas. Marca é o termo que se refere a um conjunto de associações que os consumidores usam para encontrar um produto. Mas quando os hábitos de compra migram para o online (e isso foi acelerado pela pandemia), o design e a experiência de ver e tocar o produto perdem relevância. A tecnologia de voz distancia ainda mais os atributos, porque com simples ordens de compra, um Alexa pode sugerir um produto de acordo com sua necessidade no momento, independente da marca.
Agora, olhemos por trás do que permite o Alexa funcionar: a entrega no momento certo. Isso implica em uma logística extremamente azeitada e essa capacidade só pode ser conseguida com um nível de digitalização e automação extremamente elevado, potencializada por algoritmos de IA.
Na verdade, a sua experiência de ponta a ponta como cliente da Amazon, da recomendação do produto à entrega na sua casa, é gerenciada por algoritmos de IA, apenas com a participação de humanos. As pessoas são secundárias na maioria dos workflows da Amazon.
A Amazon explicitamente adota IA no seu dia a dia (e não apenas na parte visível, como Alexa, drones e Amazon Go) e isso pode ser visto já em 2016, em uma das famosas cartas aos acionistas de Jeff Bezos. Nessa, ele disse: “Mas muito do que fazemos com machine learning acontece sob a superfície. O machine learning conduz nossos algoritmos para previsão de demanda, classificação de pesquisa de produto, recomendações de produtos e negócios, colocações de merchandising, detecção de fraude, traduções e muito mais. Embora menos visível, grande parte do impacto do machine learning será desse tipo. aprimorando as operações principais de maneira silenciosa, mas significativa.”
Todos os setores estão em transformação. Por exemplo, o varejo com seus supermercados, que hoje é o lugar aonde a inovação vai para morrer, com suas cansativas e frustrantes experiências de compras; a indústria automotiva com a convergência de fatores como automação, eletrificação e o conceito de “usar” e não de “ter”; a medicina, saindo da doença para a saúde, dos tratamentos massificados para individualizados, de compulsoriamente presencial para telemedicina e presencial quando necessário e de reativa para prescritiva. Mas as transformações vão além, na essência do que é local de trabalho ou o que é uma escola.
Nos próximos anos começaremos a ver novos modelos de empresas, com novos modelos de negócio e novos modelos operacionais. É um desafio para as empresas que existem hoje. As organizações atuais e seus líderes foram “construídos” e educados para evitarem riscos. A maioria dos CEOS não aceitaria correr riscos com menos de 50% de chance de sucesso, não importa o tamanho do retorno potencial. Observamos isso no campo das aplicações de IA, em que os investimentos são tímidos, muitas vezes restritos a experimentações e protótipos, com muitos receios dos próximos passos.
Esse pensamento é diferente das oito empresas citadas aqui no início do texto. Essa mentalidade conservadora é que, provavelmente, faz com que as empresas da “velha economia” percam valor para as empresas da “nova economia”. As montadoras tradicionais versus a Tesla. Os grandes varejistas versus a Amazon. As empresas de tecnologia versus a AWS.
A crescente evolução e sofisticação da IA nos permite quebrar pressupostos, hábitos e processos que construímos e solidificamos ao longo de décadas em relação aos modelos de operação e negócios das empresas. A IA pode provocar obsolescência nas profissões e nos modelos de operação das empresas. Pode abrir espaço para criarmos e inovadores modelos de negócios. A junção do digital com o analógico é inevitável. O digital, motorizado pela IA, não é mais “a nova economia”, mas “a economia”.
O pensamento de seguir caminhos já trilhados e jamais fazer incursões por territórios desconhecidos é o mantra dos executivos e empresas tradicionais. Elas possuem grandes recursos para inovar, mas raramente assumem grandes riscos ou inovam, pelo medo de canibalizarem parte de seus negócios. Lembrem que Skype e WhatsApp não surgiram de dentro das telcos e Airbnb não foi um spin-off de uma grande rede hoteleira.
O uso mais intensivo da IA e a criação de “AI-powered organizations” é a oportunidade das empresas se reposicionarem para a nova era digital. Não é a eletricidade e o motor a combustão interna que irão mudar e moldar o mundo das próximas décadas, como o fizeram no último século, mas tecnologias transformadoras digitais como a IA.
Mas, para isso acontecer e as empresas se manterem competitivas, é necessário arriscar mais. Creio que a inspiração poderá vir da primeira carta aos acionistas de Jeff Bezos. “O fracasso e a invenção são gêmeos inseparáveis. Para inventar, é preciso experimentar; se você soubesse de antemão que algo vai dar certo, não seria um experimento.”
Fonte: artigo de Cezar Taurion, VP de Inovação da Cia Técnica Consulting, e membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA publicado em Neofeed.
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